sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Poicaré-Matemático

* Trechos da nota introdutória do livro "Deus Joga Dados ? - a Matemática do Caos" de Ian Stewart

Hoje em dia, no final do século XX, seria quase um insulto perguntar a alguém se sabe quem foi Albert Einstein. Na verdade, a importância do seu trabalho não é ignorada por ninguém, embora, compreensivelmente, a natureza e os pormenores deste o sejam por muitos. A sua imagem, que se tornou emblemática na sociedade moderna, é reconhecida por todos, tendo-se tornado (ao contrário, estou convencido, do que o próprio Einstein teria gostado) símbolo de valores como pensamento, profundidade, transformação do mundo pela reflexão e outros proventura menos nobres mas bem explorados pela indústria do marketing. Einstein é o paradigma da genialidade: o homem é a imagem do gênio.

Devo dizer que concordo sem restrições, por razões que não vêm aqui a propósito, com a genialidade ímpar de Einstein. A questão é que, tal como a física, também a matemática teve o seu gênio ímpar, o seu Einstein. E no entanto, alguém se sentiria insultado ao ser-lhe perguntado se conhecia Henri Poicaré?

Dificilmente se encontrará, na história da ciência dos últimos dois séculos, figura mais capaz de ombrear com Einstein do que Henri Poincaré, o último universalista. Poincaré não só deixou uma vastíssima e importantíssima obra em todos os campos da matemática, e mesmo da física, do seu tempo, como a mecânica clássica, mecânica celeste, física matemática, teoria dos números, teoria das funções, equações diferenciais ou análise real e complexa ( a propósito deste paralelo, é curioso referir que Poincaré atingiu, independentemente de Einstein e ao mesmo tempo que este, em 1905, uma formulação da teoria da relatividade restrita), como também fundou mesmo, com seus trabalhos, um conjunto de novos ramos da matemática, como a topologia ou a teoria qualitativa das equações diferenciais,e as suas idéias seminais continuaram a influenciar decisivamente toda a investigação matemática do século XX, estando presente, como um espírito que assombra uma casa, em ramos da matemática cuja fundação é posterior à sua morte, como a topologia algébrica ou a geometria diferencial. O seu papel na história, como sendo o primeiro,e durante muito tempo o único, a dar-se conta da catástrofe conceitual que representava para os dogmas e convicções da física-matemática do seu tempo o fenômeno da Bifurcação Homoclínica, que só veio a ser redescoberto e valorizado oitenta anos depois, é paradigmático: o seu espírito profundo e penetrante continua a assombrar a grande casa da ciência.

Honra lhe seja feita: Poincaré merece, de fato, um lugar no pedestal dos grandes da ciência, ao lado de um Galileu, de um Newton, de um Darwin ou de um Einstein.

Qual a razão profunda do desconhecimento, por parte do grande público, da importância de Poincaré? O problema é complicado. Creio que não reside em Poincaré, mas sim na natureza da ciência que o apaixonou e a que se dedicou, radicalmente diferente da das ciências naturais. Cito, de memória, Leopold Kronecker: "A essência da matemática é a liberdade". A meu ver, esta frase resume uma característica fundamental da matemática, em contraposição às ciências naturais: estas, por mais abstratas e elaboradas que se sejam as teorias, estão confinadas a debater problemas relativos ao mundo natural, físico, químico ou biológico, e estão portanto sempre sujeitas ao veredicto final que a Natureza, através da experiência, decida conferir-lhes sobre a sua validade, enquanto que a matemática lida com um mundo puro de idéias. O próprio objeto da matemática são as idéias e não o mundo real. Enquanto se pode determinar se, por exemplo, uma teoria física está errada extraindo-lhe previsões concretas sobre o mundo real, que depois se verifica não estarem corretas, em matemática não existe tal critério de verdade. O único critério de verdade matemático é o da correção lógica dos resultados. Deste ponto de vista, a liberdade do matemático é muito maior do que a do cientista natural: um conjunto de idéias muito belas só pode ser refutado se estiver logicamente incorreto, e nunca por confronto com a Natureza. Se não estiver incorreto, ganhou direitos de cidadania na sua ciência. Por exemplo, o estatuto matemático das geometria euclidianas e não euclidianas é idêntico, independentemente de qual seja a geometria real do nosso universo; nenhuma é matematicamente "mais verdadeira" do que as outras. Já do ponto de vista físico isto não se passa...

Nesta perpectiva, a atividade matemática está muito mais próxima da artística do que da propriamente científica: a liberdade do matemático está mais próxima da do artista do que da do cientista natural.

Será esta a razão pela qual é mais difícil o grande público valorizar a atividade de uma matemático como Poincaré do que a de um físico como Einstein? O fato de, uma vez que a matemática lida com um mundo de idéias, e não com o mundo real, não existirem fatos concretos e palpáveis - desvios gravitacionais, ou sínteses de Miller-Urey, ou fósseis, ou bombas nucleares - para apresentar às pessoas, mas apenas idéias - distribuição de primos, ou teorema de Cauchy, ou conjectura de Poincaré, ou teorema de Atiyah-Singer-, poderá fazer com que o público tenha dificuldade em aperceber-se da real importância da matemática no conjunto das ciências? É possivel, embora tal seja demasiado complexo para poder ser aqui tratado.

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